Saturday 8 December 2007

Kaza

A Asel vive comigo enquanto espera para se mudar para a sua nova casa. Nunca tinha conhecido ninguém do Kazaquistão antes. Quando descreve partes de si é como se me estivessem a ler alto histórias de encantar. Estamos longe como os nossos países um do outro mas é como se dissessemos o mesmo em linguas distintas.

Sou um bocado de terra de ninguém. Um lugar de passagem.
Com sorte caem sementes que esperam pacientes pela primavera.

Wednesday 5 December 2007

full contact

À mesa com colegas de trabalho, um deles ameaçou distraidamente raspar o braço nalguma parte do meu corpo e simultaneamente dirigir a sua bochecha esquerda para me cumprimentar, quando eu automaticamente dava a direita. Tais movimentos desencadearam em mim o mata ou morre em batalha campal: starring o inimigo versus Danielson, em posição de frango no espeto com perna semi levantada. Mais rápida que a sombra do Lucky Luck esquivei-me de braços pernas bocas e palavras e voltei à minha posição inicial, primeira no ballet, pés no chão e segura. Livre de contacto.

Depois deste breve episódio de luta livre meets dança contemporânea fui bombardeada com opiniões, gargalhadas e aplausos sobre o novo estilo de movimento acrescentada ao mundo das artes marciais e de palco. Este meu excelentissimo colega começou a pedir permissão para cruzar o caminho comigo ou desculpa por ter cometido esse sacrilégio que é o eventual pousar de pele na manga do meu casaco.

Epá, e uma pessoa fica um bocado chateada quando o publico não percebe a sua arte.

A partir daí tornei-me mais atenta: não há prazer em mostrar coisíssima nenhuma ao espectador insensível. Um mês depois, num bar empacotado de gente, os meus colegas levaram-me pela mão para não nos perdermos e eu não disse nada. Na mesma noite até deixei que um deles me dirigisse, mão na cintura, de uma sala para outra. E tudo isto como se fosse normal tocarem-me na cintura ou darem-me a mão quando entendem. Estava, aparentemente, tudo bem. Standard. Ameno. Manso.

Mas hoje enquanto trocava e-mails com um amigo para nos pouparmos à morte via tédio, eu em busca dos metros quadrados perdidos para encaixar salas de aula, ele em busca sabe deus do quê para acabar a tese, sai-se com esta:

"Gaita mulher, aceita o bom, leva-o: o beijo e o bom e tudo o demais. Tens mais energia reactiva empacotada em ti do que meia revolução do proletariado russo!"

Epá, e uma pessoa não só fica chateada, como cora e fica preocupada. Agradeci o detalhe de meia revolução.


Acho que com esta me tornei, o ficialmente, alérgica ao toque. E não só ao vivo e a cores, como ao toque virtual! Não é para todos, não. Um estúpido de um beijo. Nem sequer daqueles que se dão normalmente, mas dos que se dizem normalmente. Normalidade: zero. Endireita-se novamente o Danielson e vai de bombardear o desgraçado com wax in wax out, mão direira, mão esquerda no teclado.


Acho que sinto falta de outras mãos. Falta de outros beijos. Falta de outro toque.
Acho que estou na fase bola de sabão: se me deixo tocar acho que me desfaço em ar.
E eu não me quero desfazer no ar. Uma pessoa não deve desfazer-se em ar por qualquer um.

Sunday 2 December 2007

silêncio

Já acabou mas eu ainda olho para todos os lados como se alguém procurasse por mim ou eu estivesse simplesmente com medo do escuro.

Não é só a beleza de cem pontos iluminados num pano escuro de fundo, é também a dor de tirar sangue muito devagarinho. A Teresa Salgueiro a soprar palavras em latim: o corpo negro na cara branca. Uma parede ao fundo. Pedras de sussurros, ecos e gritos. Depois de os tempos todos de silêncio e de noite, a guitarra que esperou o tempo todo antes.
§

Depois foi entrar no cinema de olhos fechados. Tocar nas marionetas. No vermelho. No branco.
(esperar pelo azul)
Depois do depois não sei. Uma voz grande, enorme, gigante a chorar. Muito sangue. E mais lágrimas a cair no palco. Mesmo à frente, pelo meio. Ao fundo a parede a chorar alto, sem cair. Cem pontos de luz com lágrimas a cair das bocas, pelos dedos, pelos arcos, pelos baquetes, pelos pedais. E uma tristeza grande, enorme, gigante à solta na sala. A entrar por todas as partes de todas as pessoas. Pelos ouvidos e pelas bocas abertas de espanto. Pela pele.
(Até aqui, o público civilizado; a tossir nas pausas, a esperar pelo fim para entrar ou sair, a contar para não errar nos aplausos)
Quando se ouviu a ultima lágrima cair no palco, a multidão chorou como pôde: de pé e pelas mãos.

Lacrimosa pela morte de um amigo.
Luto pela morte de Véronique.
Um luto azul. Azul.

O amigo que não morreu a chegar e a chorar também de pé.
Os meus olhos abertos.
Sou um corpo sem sangue.


Zbigniew Preisner
1. Silence, night and dreams com Teresa Salgueiro
2. A suite of film music: Dekalog, La double vie de Véronique, Bleu, Blanc, Rouge, Requiem for my friend, com Elzbieta Towarnicka

Barbican, 2 Dezembro 2007